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Ex-sem-teto em Paris é nova estrela da música britânica

24 nov 2015 - 08h23
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Músicos são presença constante em estações de metrô de várias cidades europeias. Muitos são ignorados pelos que passam, outros arrecadam o suficiente para as refeições, e alguns dizem que faturam um bom dinheiro.

É raro, porém, que passageiros vejam-se diante de uma futura estrela.

Poucos anos atrás, o britânico Benjamin Clementine cantava e tocava guitarra em estações do metrô de Paris, por alguns trocados que o mantinham vivo.

Passou inúmeras noites nas ruas da capital francesa, dormindo em calçadas, enfrentando o frio e a neve. No último dia 20, Clementine transformou-se num dos mais respeitados cantores da atualidade.

Competindo com nomes consagrados, recebeu o prêmio anual britânico de música Mercury de melhor álbum de 2015, por At Least For Now, seu trabalho de estreia.

Tempos duros

Cenas dos tempos difíceis de Benjamin Clementine como sem-teto ainda podem ser vistas. Algumas de suas apresentações no metrô parisiense foram registradas em vídeo por passageiros, com seus telefones celulares, e postadas à época no YouTube.

Em uma delas, compartilhada na internet em dezembro de 2012, Clementine equilibra-se no espaço entre dois vagões enquanto oferece aos passageiros sua versão de Rehab, de Amy Winehouse. Na cena, um homem à sua esquerda parece mais interessado no livro que lê, mas uma mulher se aproxima para lhe dar umas moedas – e ele agradece. Outros o acompanham no refrão e cantam "No, no, no".

(vídeo do YouTube)

Em outra apresentação registrada em vídeo, publicado por uma passageira no YouTube em setembro de 2011, ele reproduz os versos de No Woman, No Cry, de Bob Marley. Sua potente voz toma conta dos corredores da estação. "Everything is gonna be alright, everything is gonna be alright", repete um ainda pobre e desconhecido Clementine.

Ele tinha razão. Tudo acabou dando certo. Em outubro de 2013, já de volta a Londres, Clementine surgiu pela primeira vez na TV britânica, no programa musical de Jools Holland, da BBC.

(vídeo do YouTube)

Piano

Se no metrô sua companheira inseparável era a guitarra acústica, em sua versão profissional seu principal instrumento é o piano. Nele, Clementine apresentou na BBC sua primeira música lançada, Cornerstone, responsável por conquistar a imediata admiração de Paul McCartney.

Com os pés descalços, uma de suas marcas, Clementine impressionou a todos não apenas por sua cativante voz e estilo de tocar, que levaram a comparações com Nina Simone.

Ele mostrou também ter muito a dizer. "Eu estou solitário, sozinho numa caixa de pedra / Eles dizem que me amam, mas estão mentindo / Estou solitário, sozinho na minha própria caixa / E a este lugar que agora pertenço / É a minha casa, casa, casa", canta ele na belíssima Cornerstone.

Nos meses seguintes, Clementine lançou um segundo EP e trabalhou na produção de seu primeiro álbum.

Demorou um ano e meio até que At Least For Now fosse lançado e, apesar do impacto positivo entre críticos e da indicação ao prêmio Mercury, a disputa pela maior glória da música britânica foi acirrada.

Com concorrentes mais badalados ou já consagrados, como a banda indie Wolf Alice, Florence and the Machine e Aphex Twin, Benjamin Clementine não acreditava que poderia sair vencedor. "Sempre quis ser indicado para este prêmio, mas nunca pensei que eu pudesse vencer. Sempre fiz piada sobre isso!", disse o cantor de 26 anos.

Maior prêmio da música

O Mercury é o maior reconhecimento almejado por artistas do Reino Unido e da Irlanda. É entregue ao melhor álbum do ano, escolhido por um júri de 12 pessoas formado por críticos, músicos e compositores.

Entre grandes nomes já vitoriosos estão as bandas Primal Scream, vencedora da primeira edição do prêmio, em 1992, Portishead (1995) e Arctic Monkeys (2006). A cantora PJ Harvey venceu duas vezes, em 2001 e 2011, enquanto Amy Winehouse e Adele foram apenas indicadas, duas vezes cada.

Estar entre os 12 indicados, no entanto, já é considerado uma honra capaz de impulsionar a carreira de qualquer artista. No caso de Clementine, a vitória, já em seu primeiro álbum, apenas três anos depois de sua realidade de cantor de rua, é um feito impressionante – e merecido.

O trabalho de Benjamin Clementine oferece um conjunto de qualidades de que o atual cenário musical mundial anda carente.

Apesar de não ler partituras, ele é um músico de qualidade, autor de melodias que cativam e podem levar muitos às lágrimas. Muitas vezes ele parece apenas declamar sobre as notas do piano, tocado de forma simples e melancólica. Quando decide soltar a voz, Clementine é capaz de chamar a atenção do mais desatento dos ouvintes e comover a mais gelada das almas.

Sua obra tem ainda mais força devido às letras, que tratam de sua experiência de vida e suas emoções. Além de músico e cantor, Clementine é reconhecido como poeta e já disse que pretende lançar um livro com seus versos. "Eu não acho que seja um cantor, acho que sou um expressionista", afirmou ele no ano passado, ao jornal The Guardian.

Quem já conversou com Clementine reparou em sua fala mansa, de tom baixo e tímido, que contrasta com a força de seu desempenho diante do microfone. "Assim que paro de cantar, eu volto a ser tímido. Tenho uma fala mansa porque eu realmente nunca falava com as pessoas. Eu não aprendi a fazer isso", disse ao Guardian.

Como no caso de muitos outros artistas, seu trabalho é resultado direto de sua vida, seja dormindo nas ruas em Paris ou crescendo no bairro de Edmonton, no norte de Londres.

Clementine era o mais novo de cinco filhos, e sua família é originária de Gana, no oeste da África. Problemas com familiares e a sensação de que ninguém em Londres se importaria com sua ausência o levaram a trocar a cidade por Paris, em 2010, aos 21 anos, quando seu interesse por música e literatura já estava consolidado.

Ele admite ter sido um garoto difícil, que escapava das aulas da escola. Diferentemente de outros, entretanto, Clementine não fugia em direção às ruas, mas à biblioteca, onde mergulhava em obras de autores como T.S. Eliot e William Blake. Essa experiência foi vital para que produzisse letras de forte cunho poético, como a de Condolence. "Você sentiu esse sentimento / Me diga, não sinta vergonha / Você sentiu isso antes / Então não me diga / Não me diga o contrário / Eu quase me esqueci, que tolo / De onde eu venho, você vê a chuva / Antes mesmo de a chuva começar a chover."

Para as vítimas de Paris

Benjamin Clementine recebeu o Mercury numa cerimônia na sexta-feira, 20 de novembro, uma semana após os atentados do Estado Islâmico que mataram ao menos 130 pessoas em Paris. Após ser anunciado como vencedor e chamar ao palco todos os outros concorrentes, ele dedicou a conquista às vítimas dos ataques, num discurso interrompido pelo choro que não conseguiu conter.

O vídeo de uma de suas músicas revela como Paris permanece no seu coração. A faixa London fala sobre a esperança por um futuro positivo para Clementine, o que talvez tenha ocorrido antes do que ele esperava. "Londres Londres Londres está te chamando / O que você está esperando, o que você está procurando? / Londres Londres Londres está tudo dentro de você / Por que você está negando a verdade?"

O vídeo, porém, não foi filmado em Londres, mas em Paris. Enquanto canta os belos versos de London, Benjamin Clementine aparece, novamente descalço, no topo de um prédio em sua cidade adotiva. No horizonte, imponente, está a Torre Eiffel, em imagens que servem como uma declaração de amor à paisagem parisiense.

(vídeo YouTube)

Em tempos de ódio e conflitos, declarações de amor são ainda mais bem-vindas, especialmente quando ignoram fronteiras e aproximam culturas.

O aparecimento de Benjamin Clementine representa mais que um ganho de qualidade para a cena musical britânica – e mundial.

De família africana, nascido no Reino Unido e com a França em sua história de vida, o cantor britânico simboliza a diversidade que compõe cidades como Londres, Paris ou São Paulo, a mesma diversidade que se vê ameaçada por ataques de extremistas como os ocorridos em Paris.

Clementine mostra que a guerra contra o fanatismo não será vencida apenas com bombardeios e aparato policial. Ela também contará com música e poesia.

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