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Livro sobre Festival de 67 traz depoimentos inéditos de ícones da MPB

25 mai 2013 - 13h50
(atualizado às 13h50)
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<p>Chico Buarque e MPB4 apresentam 'Roda Viva'</p>
Chico Buarque e MPB4 apresentam 'Roda Viva'
Foto: Reprodução

A data era 21 de outubro de 1967 e o Teatro Paramount, no centro de São Paulo, fervilhava com seu público jovem, impiedoso e sedento por música. Naquela noite, se apresentariam os artistas que disputavam a etapa final do III Festival da Record, transmitido ao vivo pela emissora. Os concorrentes? Chico Buarque (com Roda Viva), Edu Lobo e Capinan (com Ponteio), Caetano Veloso (com Alegria, Alegria), Gilberto Gil (com Domingo no Parque), entre outros músicos (não menos importantes) que, anos mais tarde, ficariam consagrados na Música Popular Brasileira.

A atmosfera dessa noite, que teve vaia, discussão e violão jogado no público, foi resgatada em 2010, quando estreou o documentário Uma Noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil. Agora, os autores lançam o livro homônimo que traz, na íntegra, as entrevistas com Chico Buarque, Roberto Carlos, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Capinan, Sérgio Ricardo, Jair Rodrigues, MPB4, Nana Caymmi, Nelson Motta e Marília Medalha, além dos jurados Ferreira Gullar e Júlio Medaglia, do escritor Zuza Homem de Mello (que, na ocasião, era técnico de som), do repórter Chico de Assis e de Paulinho Machado de Carvalho, então diretor da Record.

Em uma abordagem mais ampla sobre a chamada Era dos Festivais, em que a TV era a vitrine dos prodígios da música nacional, o livro não se foca apenas na competição da Record de 1967, como é o caso do documentário. A obra, por outro lado, reúne uma série de depoimentos inéditos do período, como a confirmação de Chico Buarque sobre um momento inusitado do Festival da Record de 66. O músico, que disputava com a canção A Banda, descobriu que seria o primeiro colocado, mas pediu a Paulinho Machado que empatasse com Disparada, de Geraldo Vandré - interpretada por Jair Rodrigues.

“As histórias de bastidores que eles contam sobre essa disputa são muito saborosas”, comentou Ricardo Calil, em entrevista ao Terra. “Ele (Chico) achava que Disparada era uma música tão boa ou melhor que a dele. Então, o Paulinho foi até os jurados e propôs um empate. Eles toparam e acabou empatando. Nós conhecíamos essa história pela boca do Paulinho, mas nunca pela boca do Chico”, continuou o autor.

<p>Caetano Veloso apresentou 'Alegria, Alegria' ao lado dos roqueiros argentinos do Beat Boys</p>
Caetano Veloso apresentou 'Alegria, Alegria' ao lado dos roqueiros argentinos do Beat Boys
Foto: Reprodução
III Festival da Record

Em uma época em que os festivais faziam parte da programação de emissoras como Excelsior, Record, Globo e TV Rio, o III Festival da Record não foi escolhido à toa. Segundo Calil, a competição não foi icônica apenas por apresentar canções tão expressivas, mas também por representar a mudança que acontecia na música brasileira.

“Foi o festival em que o Caetano e o Gil introduziram a guitarra na MPB. Antes disso, estava tudo muito dividido: ou faziam MPB ou faziam iê-iê-iê, como a turma da Jovem Guarda. Então, eles propuseram a mistura, de juntar o tradicional ao moderno e se abrir às influências estrangeiras. E isso acabou sendo um choque, uma pequena revolução dentro da música brasileira”, observou o autor.

Quando a guitarra encontrou a MPB

Em meio à tensão política da ditadura militar, o Brasil atravessava um momento delicado também na cultura, em que a música nacional começava a incorporar elementos do rock’n’roll estrangeiro. Nesse contexto, Gilberto Gil e Caetano Veloso desafiaram a todos ao se apresentarem ao lado de grupos de rock: Os Mutantes e os argentinos do Beat Boys, respectivamente. Uma contradição interessante, no entanto, é que, alguns meses antes, Gil havia participado da passeata contra a guitarra elétrica, que teve defensores como Elis Regina, amiga a quem o baiano creditou sua ida à manifestação.

“Ele creditou muito a ida dele à solidariedade que tinha pela Elis. Antes desse festival, ele era conhecido mais como compositor do que como intérprete, e quem tinha lançado ele como compositor havia sido a Elis. Então, ele tinha uma gratidão pela Elis, que, por sua vez, naquele momento, representava a defesa da MPB, até por uma questão mercadológica”, contou Calil.

<p>Sérgio Ricardo quebrou o violão após ser vaiado, quando cantava 'Beto Bom de Bola'</p>
Sérgio Ricardo quebrou o violão após ser vaiado, quando cantava 'Beto Bom de Bola'
Foto: Reprodução
Vaias: um personagem à parte

Apesar da qualidade musical apresentada nos festivais, o público era impiedoso na hora de vaiar, principalmente as canções que consideravam “alienadas”, dado o contexto político da época. Dessa fúria não escaparam nem Caetano, nem Gil, nem Roberto Carlos (que tinha até torcida organizada contra ele). Mas foi Sérgio Ricardo que protagonizou um momento emblemático, que ficaria registrado na história. Vaiado incessantemente ao tentar apresentar Beto Bom de Bola, ele acabou se descontrolando, quebrou o violão e o arremessou no público.

“Eu acho que o Sérgio acabou se preocupando demais com aquilo (vaias), que era um desrespeito mesmo, mas o Roberto e o Caetano conseguiram superar aquele momento com outras estratégias. O público era muito importante, era um personagem também, e o Sérgio Ricardo até fala isso. Nós vivíamos em um momento muito tenso ali e era uma maneira que eles (público) encontravam para se manifestar, inclusive politicamente”, comentou Calil.

Confira abaixo a entrevista completa com o autor Ricardo Calil.

Terra - Primeiro, gostaria de saber como surgiu a parceria entre você e o Renato Terra para dar forma ao projeto.

Ricardo Calil - O Renato Terra fez o TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) dele sobre a Era dos Festivais. Um professor dele, então, falou que seria interessante tentar transformar isso em um documentário. Nessa época, trabalhávamos juntos em um portal da internet e eu escrevia sobre cinema, então ele me chamou para que eu me juntasse a ele, e assim surgiu a ideia para fazer o documentário.

Terra - O trabalho era inicialmente sobre a Era dos Festivais. Por que decidiram focar apenas no III Festival da Record, de 1967?

Calil - A gente percebeu que é um assunto muito extenso, então decidimos focar no Festival da Record de 67, que é, musicalmente, talvez o mais importante, já que tem Alegria Alegria, do Caetano, Roda Viva, do Chico, Ponteio, do Edu Lobo, Domingo no Parque, do Gil... Então decidimos focar nisso.

Terra - Além dessas canções, que ficaram consagradas na MPB, quais outros quesitos fizeram vocês escolherem o III Festival da Record?

Calil - Acho que a questão inicial foi por conta das músicas mesmo, mas é um festival relevante por outros motivos também. Entre eles, foi o festival em que o Caetano e o Gil introduziram a guitarra na MPB. Antes disso, estava tudo muito dividido: ou faziam MPB ou faziam iê-iê-iê, como a turma da Jovem Guarda. Então, eles propuseram a mistura, de juntar o tradicional ao moderno e se abrir às influências estrangeiras. E isso acabou sendo um choque, uma pequena revolução dentro da música brasileira. Com tudo isso também veio a ideia comportamental e a divisão política, que está bem representada no festival, com as música engajadas. Por exemplo, o Edu Lobo e o Chico faziam a música mais engajada, enquanto o Caetano e o Gil já propunham a ideia de contracultura.

Terra - Como foi o trabalho de pesquisa?

Calil - 

Quando decidimos fazer o projeto, primeiro lemos tudo que tinha a respeito. A obra fundamental sobre os festivais é o livro do Zuza (Homem de Mello),

A Era dos Festivais – Uma Parábola

, que acabou se tornando consultor do filme, para o nosso prazer, além de uma série de outros livros importantes. Enfim, lemos tudo, colhemos informações com pessoas desse período e depois partimos para as entrevistas e fomos atrás da Record, que acabou se tornando coprodutora do filme, para ceder as imagens de arquivo, que eram fundamentais. Também fizemos uma pesquisa extensa de imagens em outros lugares. Cinema é um processo longo, mas também muito prazeroso.

Terra - Você entrevistaram artistas que não costumam falar com a imprensa, como o Chico Buarque e o Roberto Carlos. Como conseguiram fazer com que aderissem ao projeto?

Calil - 

Chico (Buarque) e Edu (Lobo) são pessoas que não falam tanto assim, mas a gente contou com uma ajuda muito importante da nossa produtora, a Beth (Accioly), que já tinha trabalhado com ele, então ela fez essa ponte. No caso do Roberto (Carlos), que é ainda mais difícil de falar com a imprensa, tivemos a ajuda do Zuza, que é amigo dele e que nos permitiu o acesso.

Terra - Teve alguém que vocês convidaram e que não aceitou?

Calil -

Tiveram duas pessoas importantes que tentamos bastante e que não conseguimos. Uma delas é o Geraldo Vandré, que é um compositor muito importante da época. Em 1967, ele estava com

Ventania

, que é uma música que pouca gente lembra hoje, mas tentamos muito falar com ele, só que, infelizmente, não foi possível concretizar, já que ele nunca deu uma resposta definitiva para nós. Outra pessoa que tentamos bastante foi a Rita Lee, que fazia parte dos Mutantes e que acompanhou o Gil (na apresentação de

Domingo no Parque

). Era o primeiro grande momento de exposição deles (Os Mutantes). A gente até entrevistou o Arnaldo Baptista e incluiu nos extras do filme, mas a Rita Lee nós tentamos muito, mas acho que ela não gosta de falar muito sobre esse período dos Mutantes. Ela não tem dado muitas entrevistas sobre isso, então não conseguimos.

Terra - Vocês falaram com anônimos que estavam entre o público?

Calil - A gente fez uma entrevista com quatro torcedores emblemáticos, entre eles a Telé Cardim, que era a torcedora-símbolo dos festivais, e colocamos nos extras. As decisões de edição às vezes são meio dolorosas.

Terra - Foi dessa “dor” que surgiu a ideia de fazer o livro, que traz todas as entrevistasna íntegra?

Calil - O desejo de fazer o livro tem a ver com o fato de que muita coisa que a gente achava que era relevante não pôde ser contemplada no filme. A gente fez 70 horas de entrevistas para o filme, que comporta apenas 1 hora, então essa proporção de 70 pra 1 é muito injusta, né? (risos) A gente imaginou que o livro seria uma boa maneira de dar vazão a esse material, além de aprofundar certos assuntos e ir um pouco além de 67 também, porque no livro foi possível falar sobre a Era dos Festivais como um todo.

Terra - Qual parte das entrevistas que está no livro e que foi mais dolorosa de tirar do documentário?

Calil - 

Eu adoro as partes em que o Chico e o Jair Rodrigues falam sobre a final do Festival da Record de 66, quando o Chico apresentou

A Banda

e o Jair defendeu

Disparada

, do Geraldo Vandré. As histórias de bastidores que eles contam sobre essa disputa são muito saborosas. O Chico, pela primeira vez, confirma uma história que já é conhecida para quem pesquisa essa área, que é que ele ficou sabendo que

A Banda

iria ganhar e pediu para o Paulinho Machado de Carvalho (diretor da Record na época) para ele dar um jeito no resultado, de modo que não ganhasse sozinho, porque ele achava que

Disparada

era uma música tão boa ou melhor que a dele. Então, o Paulinho foi até os jurados e propôs um empate. Eles toparam e acabou empatando. Nós conhecíamos essa história pela boca do Paulinho, mas nunca pela boca do Chico. A gente não conseguiu colocar no filme porque é de 66, mas está no livro.

<p>Edu Lobo e Marília Medalha cantaram 'Ponteio', ganhadora do festival</p>
Edu Lobo e Marília Medalha cantaram 'Ponteio', ganhadora do festival
Foto: Reprodução
Terra - Como foi o clima durante as entrevistas? Você sentiu algum tipo de nostalgia ou arrependimento por parte dos artistas?

Calil -

Muitos espectadores comentaram que, depois de assistirem o filme, se sentiram nostálgicos. Jovens que não presenciaram aquela época até usaram a frase “saudades do que eu não vivi”, mas, curiosamente, essa nostalgia não estava presente nos entrevistados. O Caetano fala que acha que

Alegria, Alegria

não é uma das suas melhores músicas. O Chico fala que não lembra direito de

Roda Viva

. O Gil fala que o

Domingo no Parque

foi um momento muito traumático pra ele. O Edu disse que, depois do festival, não queria mais ficar cantando

Ponteio

sempre. Então, houve essa reversão de expectativa, já que a gente achava que eles tinham muita saudade desse tempo. Mas eu acho que faz sentido, porque eles são pessoas que não ficaram paradas no tempo, mas que continuaram com uma obra forte até hoje.

Terra - Nos depoimentos, os entrevistados falam sobre episódios muito pessoais. Eles não se sentiram intimidados em revelar essas passagens?

Calil - 

Nós não os conhecíamos antes, então o que fizemos para conquistar a confiança deles no curto espaço de tempo que tivemos, foi estudar muito antes, para chegar muito preparado, e também criar um clima de cumplicidade. Enfim, gosto de acreditar que fomos muito bem sucedidos, porque eles deram depoimentos muito intimistas, muito reveladores.

Terra - No Festival de 67, o Roberto Carlos apresentou Maria, Carnaval e Cinzas e foi muito vaiado no início da apresentação. Com base na entrevista com ele, como você vê essa passagem?

Calil -

O Roberto passou pelos festivais um pouco paralelamente. Ele não teve grande sucesso nos festivais como o Chico e o Caetano, pois era mais conhecido por sua participação na Jovem Guarda. Na época, em que o país estava muito dividido ideologicamente, as pessoas vaiaram o Roberto não porque não gostavam dele ou da música dele, mas porque ele era visto como um cara meio alienado, americanizado, que ajudou a trazer o rock’n’ roll para o Brasil, adaptando o ritmo ao português. Por isso, ele era visto como um cara colonizado, em um certo sentido. As pessoas, sobretudo os estudantes, que na maioria eram de esquerda, já iam com o objetivo de vaiar ele, e acho que ele não estava preocupado, pois os festivais, para ele, eram uma coisa a mais, já que o sucesso vinha de outro lado. Na entrevista, o Roberto ficou surpreso quando o Zuza perguntou se ele sabia que existia uma torcida organizada para vaiá-lo. O livro tem essas surpresas, eles descobrindo ou redescobrindo coisas a que não tinham se atentado. O Magro, do MPB4, disse “dando a entrevista para vocês é que a gente lembra tudo aquilo que na nossa memória estava disperso, tudo aquilo aconteceu numa noite só, e é incrível relembrar isso”. Então, acho que foi uma maneira também de os entrevistados reencontrarem esse momento tão importante da vida deles.

Terra - O Magro morreu em 2012. Como foi o clima durante a entrevista com o MPB4? Ele já estava doente?

Calil -

As gravações foram em 2009 e ele acabou morrendo, infelizmente, três anos depois. Ele estava bem de saúde, bem humorado. A gente acaba tendo uns entrevistados preferidos, que temos mais empatia, que são mais generosos. Na média, foi todo mundo muito legal, tanto as pessoas que estão muito ocupadas hoje em dia, quanto aquelas que a gente ouve falar menos. Todo mundo foi muito legal, mas tivemos um carinho muito especial por duas entrevistas, que é a do Sérgio Ricardo e a do MPB4. Foi um sentimento de que estávamos encontrando não só artistas muito especiais, mas também pessoas muito bacanas. O clima foi ótimo, eles são pessoas muito simples, o que, depois, nos fez sentir muito mais a perda do Magro, que foi também uma perda enorme para a música brasileira.

Terra - O assunto “vaias” foi muito abordado nas entrevistas. No final, vocês sentiram que eles se importavam mais com as vaias ou com a avaliação do júri?

Calil -

Cada um reagiu de um jeito às vaias. O Sérgio (Ricardo) tentou dialogar com o público, mas todos estavam enlouquecidos e ele acabou levando ao extremo, que foi quando ele quebrou o violão. O Caetano partiu para um certo confronto, olhou firme pra plateia e acabou ganhando. Enquanto isso, o Roberto ignorou completamente. Eu acho que o Sérgio acabou se preocupando demais com aquilo, que era um desrespeito mesmo, mas o Roberto e o Caetano conseguiram superar aquele momento com outras estratégias. O público era muito importante, era um personagem também e o Sérgio Ricardo até fala isso. Nós vivíamos em um momento muito tenso ali e era uma maneira que eles (público) encontravam para se manifestar, inclusive politicamente. Então, o júri era importante, porque eram eles quem iriam decidir, mas o público era tão ou mais importante naquele cenário.

Terra - O Paulinho Machado de Carvalho morreu em setembro de 2010, pouco tempo depois de ser entrevistado por vocês. Ele era diretor da Record na época em que a emissora era líder de audiência e tinha na programação atrações que se eternizaram na TV brasileira, como os festivais e outros programas de música. Como era o homem que estava à frente de tudo isso?

Calil -

Conosco, ele foi uma figura extremamente gentil, tranquila, simples e bonachona. Eu acho que essas qualidades dele ajudam a explicar como ele conseguiu reunir tanta gente na emissora. Os músicos que estavam na Record eram, na maioria, contratados da emissora, como hoje a Globo contrata os atores para as novelas. Ou seja, foi um cara que entendeu que ele tinha um tesouro na mão, que era a MPB, e tentou dar a esse tesouro a melhor vitrine que ele tinha. Havia programas musicais no horário nobre em quase todos os dias da semana, como o

Fino da Bossa

, o

Jovem Guarda

, o

Show em Si...monal

, o

Bossaudade

... A música ocupava um lugar que hoje é ocupado pelas novelas e pelo futebol. As pessoas discutiam música de uma maneira tão apaixonada quanto hoje se discute um Fla-Flu (jogo entre Flamengo e Fluminense). Então, acho que grande parte dos méritos está nessa sabedoria do Paulinho.

Terra - O Chico Anysio também foi um entrevistado que morreu (em março de 2012). Qual foi o momento mais marcante da conversa com ele?

Calil - 

O momento mais marcante foi quando ele falou que a (música) preferida dele era

Alegria, Alegria

, do Caetano. Ele fala assim: “ninguém lembra do

Ponteio

, que foi a ganhadora, todo mundo lembra de

Alegria, Alegria

”. Em seguida, ele começa a cantar a primeira parte de 

Ponteio

, achando que não vai lembrar, mas canta a música inteira! Então, acho que a beleza do depoimento dele está na própria contradição, de falar que ninguém lembra da música, mas cantar ela inteirinha, sem nenhum erro, mostrando que a música também sobreviveu ao tempo.

Terra - Vocês citam no prefácio do livro que o festival marcou a tensão entre tradição e modernidade. Além do fato de alguns artistas introduzirem a guitarra, quais pontos você acredita que também marcaram essa tensão?

Calil -

Antes do festival, existia uma divisão muito clara entre a turma da MPB e a turma da Jovem Guarda. O Gil e o Caetano, com essa atitude de chamar grupos de rock para acompanhar e fundir a música tradicional brasileira à música internacional da época, provocaram um curto circuito naquele momento. Hoje, parece uma coisa simples colocar uma guitarra na MPB, mas na época foi uma revolução mesmo, tanto que, um pouco antes do festival, teve um evento que ficou conhecido como a passeata contra a guitarra elétrica. Acho que eles abriram novas possibilidades para a música brasileira, de assimilar elementos totalmente contraditórios. Quero dizer, a música erudita ao berimbau, o rock ao baião. E essa abertura que eles criaram naquele momento, que foi muito contestada, permitiu que a música brasileira tomasse outros rumos totalmente inesperados, e acho que foi esse desafio que o Gil e o Caetano lançaram.

<p>Gilberto Gil cantou, ao lado de Os Mutantes, a canção 'Domingo no Parque'</p>
Gilberto Gil cantou, ao lado de Os Mutantes, a canção 'Domingo no Parque'
Foto: Reprodução
Terra - Falando na passeata contra a guitarra elétrica, que aconteceu alguns meses antes do festival... Além de nomes como a Elis Regina e o Jair Rodrigues, o Gilberto Gil também participou da manifestação. No entanto, ele se apresentou com Os Mutantes no festival, o que indica uma certa contradição. Na entrevista, como o Gil encarou essa passagem?

Calil -

Ele creditou muito a ida dele à solidariedade que tinha pela Elis. Antes desse festival, ele era conhecido mais como compositor do que como intérprete, e quem tinha lançado ele como compositor havia sido a Elis. Então, ele tinha uma gratidão pela Elis, que, por sua vez, naquele momento, representava a defesa da MPB, até por uma questão mercadológica. Ela tinha explodido com o

Fino da Bossa

, ao lado do Jair Rodrigues, mas de repente ela estava perdendo a primazia para a Jovem Guarda. Então, ela ajudou a organizar essa reação contra a guitarra e o rock e o Gil credita muito essa ida dele a ela. Ele comentou que já não acreditava muito naquilo, mas que foi pela Elis e por seus amigos da MPB. Acho que foi isso, em grande parte, que fez ele travar antes da apresentação de

Domingo no Parque

. Ele se escondeu na cama antes de tocar no festival, com medo de confrontar essas questões, como alguém que havia ido a essa passeata três meses antes e que depois se apresenta com um conjunto de rock. O Gil encarnou, eu digo no sentido da carne mesmo, muito dessas contradições do período.

Terra - Qual legado você vê na nossa cultura que foi deixado pelo Festival de 67? Além das canções, é claro.

Calil - 

O formato dos festivais se perdeu um pouco no Brasil. As tentativas de fazer depois não tiveram a mesma importância. Então, nesse sentido, o formato do festival não é um legado. O grande legado dos festivais é ter permitido que uma nova geração que estava surgindo, muito talentosa e privilegiada, tivesse a melhor vitrine possível do período, que deu a eles uma relevância no cenário cultural brasileiro que, até hoje, acho que nunca foi igualada. Não sei se a indústria cultural brasileira conseguiu abrir de novo esse espaço para a música, da mesma forma que foi na Era dos Festivais. Acho que isso foi altamente inspirador para todos os músicos que vieram depois. Essa geração é citada a todo o momento como uma geração decisiva. Enfim, não sei se haveria manguebeat sem Tropicália, Tulipa Ruiz sem Chico, Céu sem Gil, e por aí vai. Por isso acho que a gente deve muitíssimo a esses festivais, por conta dessas pessoas que eles lançaram.

Terra - Por qual motivo você acredita que os festivais perderam a força?

Calil - 

Eu acho que eles estavam dentro de um contexto histórico e político maior, que também ajudava a explicar a importância deles. Ou seja, eles também foram importantes porque eram uma maneira de as pessoas extravasarem as decepções, as contrariedades, as alegrias com o momento que o Brasil vivia, como se fosse uma reação a isso. Acho que também existe o fato de que era mais fácil congregar essas pessoas e colocá-las num horário nobre de TV. A indústria cultural foi para outros rumos, está muito mais dispersa e apostando em outras fichas. Então, quero dizer, foi uma somatória de conjuntos históricos que não se repetem mais. Eu acho que a música brasileira continua riquíssima, mas eu acho que esse formato de festival não expressaria essa riqueza.

Terra - Qual movimento cultural da atualidade você vê como importante, em uma comparação relativa com os festivais?

Calil - 

Não vejo exatamente um movimento, mas vejo coisas muito interessantes acontecendo. Eu não tenho nenhuma nostalgia (em relação à época dos festivais), porque acho que ainda temos esse legado, podemos acessar e ouvir

Alegria, Alegria

quando quisermos, mas também podemos ouvir o

Abraçaço,

do Caetano. Temos o privilégio de ter o passado deles, mas também de tê-los produzindo ainda, de um modo muito vivo e intenso. Sem contar que também temos uma nova geração muito interessante surgindo, com nomes como Criolo, Emicida, Céu, Tulipa Ruiz, Karina Buhr. O que eu acho é que, talvez, não haja a força dos festivais de congregar tudo isso, porque era TV aberta, então está mais disperso, exige da gente um pouco mais de garimpagem.

Terra - Recentemente, tem ganhado popularidade na TV reality shows de música, como The Voice e Ídolos, todos importados de atrações estrangeiras. Como você vê esses programas em relação aos festivais?

Calil - 

Eu sinto uma diferença grande porque, nos festivais, você estava buscando novos artistas, representado novas músicas. Então, isso permitiu, por exemplo, que Gil, Caetano e Chico despontassem. Nos reality shows, o que está acontecendo, basicamente, é que eles estão procurando intérpretes para cantar músicas alheias, que não são inéditas, que já são sucesso. Nesse aspecto, sem querer ser nostálgico, eu acho menos rico, porque, no fundo, você não está apresentado novas criações, estimulando novos compositores. Mas, enfim, aquele momento foi mais rico porque permitiu que Gil tocasse

Domingo no Parque

com Os Mutantes, em um programa que teve 93 pontos de audiência.

Terra - Na entrevista com o Ferreira Gullar, ele diz que essa época dos festivais, os anos de chumbo, também foram anos de ouro. Com base nesse material todo, como você vê esse comentário dele?

Calil -

É claro que viver essa fase foi uma coisa interessantíssima, mas temos que lembrar que, politicamente, vivíamos um momento muito pior que o atual, pois era um momento de ditadura, de repressão e cerceamento da liberdade. Eu acho que 67, nesse sentido, foi um momento intermediário, porque as coisas que já estavam ruins, pioraram muito no final de 68 com o AI-5, em que a repressão passou a torturar e a matar as pessoas sistematicamente. Antes disso, havia também, mas era menos sistemático e a censura era menos forte também. O Festival de 67 foi repleto de canções com mensagens políticas, cheias de metáforas, mas, no final de 68, isso deixou de ser possível. Então, a gente ter esse momento em que os artistas se reuniram para se manifestar contra a Ditadura, e ainda sem serem severamente censurados, rendeu para nós um momento de riqueza cultural, uma geração muito influenciada pela bossa nova. O Ferreira Gullar disse que também foram anos de ouro e acho que esse festival é um momento de ouro da cultura brasileira. Mas, apesar disso tudo, eu prefiro viver hoje, em que não temos um festival tão brilhante quanto aquele, mas que temos liberdade política, sem o chumbo da repressão.

Terra - O documentário Uma Noite em 67 teve um público de mais de 80 mil pessoas nos cinemas. Você esperava essa receptividade, principalmente do público jovem?

Calil -

Eu não esperava. Nós esperávamos e torcíamos para que as pessoas que viveram essa época se reconectassem, já que os festivais foram muito importantes para os jovens daquele período. Mas ficamos muito surpresos com o modo como os jovens também se apegaram ao filme. Eles comentam no Twitter sempre que o filme é exibido, dizendo que vão atrás das músicas, das referências. São retornos que nos surpreenderam e que nos deixaram muito felizes.

Terra - Do livro vocês já tiveram algum retorno?

Calil -

É uma história que está começando agora. O livro está há cerca de um mês nas livrarias, mas os primeiros retornos são muito positivos. Acho que pessoas que viram o filme e que ficaram com aquela vontade de “quero mais” estão sendo, de certa forma, saciadas pelo livro. Sem contar que o livro está trazendo o assunto de volta à tona, e acho que o melhor que poderíamos esperar do projeto como um todo é isso: despertar ou reavivar o interesse por esse período tão rico.

Terra - Em qual momento vocês começaram a trabalhar no livro?

Calil - 

Nós tivemos a ideia para o filme e, antes mesmo de filmar, pensamos que poderia dar um livro também. Já que vamos falar com gente tão bacana, por que não pensar num livro? Então, na hora de pedir a autorização para o uso da imagem dos artistas, também pedimos autorização para publicar em livro. É uma ideia que está presente quase desde o começo do projeto, mas depois ficamos muito tomados pelo filme e, quando conseguimos respirar, foi que achamos uma editora bacana, que teve interesse no projeto e que lançou ele muito bem. É mais um capítulo feliz nessa história.

Fonte: Terra
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