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PF busca ajuda externa para desvendar origem de obras de arte da Lava Jato

13 nov 2015 - 16h48
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Montar o quebra-cabeça da operação Lava Jato tem sido mais do que conectar redes de doleiros, confrontar delações e decifrar a complexa engenharia financeira de contratos bilionários sob suspeita de superfaturamento.

A maior investigação recente sobre corrupção no Brasil impôs um desafio diferente à Polícia Federal: desenvolver expertise em obras de arte.

Um pequeno grupo de policiais federais de Curitiba foi buscar ajuda no meio acadêmico e aposta agora na parceria com dois centros nacionais de excelência em inteligência pericial de arte para tentar, finalmente, capacitar a instituição nessa tarefa.

Isso envolve coisas tão específicas como definir a autoria de uma pintura a partir de um fragmento mais fino do que um fio de cabelo. Ou lidar com caríssimos microscópios a laser e aparelhos portáteis de raio-X e infravermelho.

"Não é a primeira vez que a Polícia Federal faz perícia em obras de arte, mas nunca houve um volume tão grande", diz o perito Fernando Comparsi, um dos três responsáveis pela análise de mais de 270 obras apreendidas em casas e escritórios de operadores do suposto esquema.

O "museu da Lava Jato" é amplo – e rendeu uma exposição com 48 obras que ficou em cartaz de abril a outubro no Museu Oscar Niemeyer, de Curitiba, depositário das obras. Reúne trabalhos atribuídos a expoentes da arte brasileira como Guignard, Di Cavalcanti, Iberê Camargo e Alfredo Volpi, além de artistas do calibre de Salvador Dalí e Joan Miró.

A PF nunca teve a estrutura e o conhecimento necessários para processar perícias de alta qualidade na velocidade necessária – algo que poucos países no mundo possuem, cabe ressaltar –, e agora espera que a Lava Jato possa deixar um legado nessa área de atuação.

Para isso, Comparsi e outros dois peritos da PF em Curitiba recorreram a especialistas do Instituto de Química da USP e da Escola de Belas Artes da UFMG para verificar a autenticidade das obras.

Sem isso não é possível estimar a partilha e o total do dinheiro público desviado – que pode ir de R$ 6 bilhões, na conta da Petrobras, a mais de R$ 20 bilhões, pelas projeções recentes da PF.

Lavagem de dinheiro

O trabalho desse pequeno grupo se tornou indispensável após acusados de envolvimento em desvios na Petrobras terem assumido a compra e cessão de obras para lavar (camuflar a origem ilegal) dinheiro de propina. A prática é recorrente no Brasil há anos, dizem especialistas.

No caso mais notório, o lobista Milton Pascowitch, que passou a colaborar com a investigação em junho deste ano, disse ter comprado um quadro de Guignard numa galeria do Rio por US$ 380 mil a pedido do ex-diretor de Serviços da Petrobras Renato Duque, preso desde março.

O "presente" seria uma forma de encobrir propina paga por contratos obtidos pela Engevix na estatal. Duque nega a acusação e a empreiteira diz se defender na Justiça.

Apenas de casa de Duque, ex-diretor da "cota" do PT no esquema de desvios, a PF apreendeu 131 obras de arte - havia até uma sala secreta com iluminação e passagem de ar independentes, que abrigava documentos e joias. A doleira Neuma Kodama e o suposto operador Zwi Skornicki também contribuíram com a lista, que cresce a cada fase da operação.

"Estamos buscando um trabalho mais objetivo possível, fugindo daquela análise que diz: 'Isso tem a cara desse artista'", afirma Comparsi. "O que é necessário à investigação é o valor da obra, para apuração de desvio de recursos. Mas para chegar ao valor precisamos saber se a obra é autêntica ou não."

É aí que entra o trabalho da professora Dalva de Faria, do Laboratório de Espectroscopia Molecular da USP. Os aparelhos da equipe de Dalva, que podem valer ao menos R$ 400 mil, usam técnica de alta resolução, baseada em radiação laser, para obter dados químicos e estruturais de pinturas e desenhos.

Com lente de aumento para identificar partes pigmentadas, os técnicos empregam agulhas ultrafinas para coletar os minúsculos fragmentos. Nos aparelhos, a luz refletida em áreas tão pequenas como 5 microns quadrados (o diâmetro de um fio de cabelo mede 50 a 100 microns) fornece uma espécie de impressão digital das obras.

"Tipo de material, efeito do tempo, tudo isso tem utilidade forense. Alguém pode até tentar imitar a química de uma obra, mas não consegue simular o efeito do tempo, por exemplo", afirma a professora, que colabora com a Polícia Civil de São Paulo e a própria PF há pelo menos dez anos - daí o convite atual.

Trabalho conjunto

Os peritos da Lava Jato tiveram reuniões com os especialistas da USP e da UFMG e estão em contato permanente com os técnicos, que produzem laudos sobre a "compatibilidade" das obras com os supostos autores.

"O vermelho, por exemplo, se tem mercúrio, sei que é sulfeto de mercúrio. Se encontro chumbo num branco, sei que é branco de chumbo, pigmento usado até meados dos anos 1950 no Brasil. Depois passou a ser substituído pelo dióxido de titânio, que nunca vou encontrar em obra anterior à 1920, porque a substância só surgiu no mercado depois", explica Luiz Souza, coordenador do Laboratório de Ciências da Conservação (Lacicor) da UFMG.

O centro mineiro se tornou referência ao conciliar ferramentas tradicionais da história da arte com métodos físico-químicos avançados. Atuou, por exemplo, na verificação de autenticidade do único registro em pintura da família do imperador D. João 6º (1767-1826). A tela do francês Jean-Baptiste Debret estava perdida num antiquário em Portugal, e a autoria só foi confirmada pela identificação de pigmentos típicos dos séculos 18 e 19.

Até agora, a equipe da USP está na fase final da análise de desenhos atribuídos a Guignard apreendidos na Lava Jato, mas os resultados seguem em sigilo. Outros trabalhos mais simples já foram concluídos, como a perícia de obras de autores vivos - um quadro do carioca Sérgio Vidal foi avaliado em R$ 8 mil. Constatou-se ainda que um quadro de Miró apreendido com Renato Duque é uma gravura, reprodução em papel da pintura original.

Autor do livro Lavagem de dinheiro por meio de obras de arte (editora Del Rey), o desembargador federal Fausto De Sanctis atuou em casos notórios de suspeitas de uso da arte para encobrir delitos, como o da coleção do ex-controlador do Banco Santos, Edemar Cid Ferreira, e o do traficante Juan Carlos Abadía.

Para ele, não há "vontade política real" no Brasil e no mundo de conter essa forma de disfarçar a origem de recursos ilegais. "No mercado de arte predominam o anonimato e a confidencialidade, e a facilidade de transporte de grandes valores", disse à BBC Brasil.

A legislação brasileira determina que lojas de arte comuniquem operações atípicas de compra, como transferências entre contas no exterior e pagamentos em espécie superiores a R$ 10 mil. Mas houve apenas 68 comunicações de 1999 a 2014, diz De Sanctis. "A lei não é ruim, mas tem sido pouco eficaz", conclui.

Contra o tempo

No caso da Lava Jato, onde a gigantesca operação já identificou fortes indícios de lavagem de dinheiro por meio de arte, os peritos enfrentam outro desafio: o tempo e a equipe reduzida.

"O objetivo é adquirir expertise na área e dar conta do trabalho, porque não fazemos só isso, fazemos 25 coisas ao mesmo tempo. O principal limitante agora é a disponibilidade de recursos humanos", afirma o perito Fernando Comparsi, que atua no caso com os colegas Aldemar Maia Neto e Ivan Ferreira Pinto.

Ele estima que a análise das quase 300 obras poderá levar até dois anos.

O futuro das obras, segundo Comparsi, dependerá do desdobramento de cada processo. Se um dono de obra for condenado, a Justiça decide o destino - que pode ser um museu e até leilão.

"Essa área (perícia de arte) ainda é incipiente na segurança pública em geral. Abraçamos a causa e acho que teremos um grande desenvolvimento. A PF vai adquirir nos próximos anos uma grande experiência em análise de obras de arte", disse o perito.

Pelo lado da academia, a parceria também é vista como oportunidade de produção e difusão de conhecimento. "O país está passando por uma situação tão triste do ponto de vista da moral e é muito legal tirar coisas boas do meio dessa lama", afirma Dalva, da USP.

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