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Emily Dickinson, a fora da lei de Amherst

14 mai 2010 - 15h59
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Holland Cotter
New York Times

É setembro de 1963, tenho 16 anos, e estou batendo à porta de uma grande casa de tijolos no alto da Main Street, em Amherst.

Uma mulher de uniforme branco - criada? enfermeira? - atende. "Alguém importante para mim costumava viver aqui", digo. "Será que é possível visitar a casa?"

A mulher fica intrigada. Falando baixinho, como se tentasse não incomodar o sono de alguém, ela explica que o proprietário está no andar de cima e não pode descer. "Ah, nem precisa incomodar as pessoas. Só quero dar uma olhadinha". Depois de hesitar, ela parece decidir que sou um jovem sério e inofensivo, e permite minha entrada.

Lá entro, o aspecto é vitoriano. Pisos de madeira polida; luz suave e fraca. Uma escadaria curva. À direita uma biblioteca; à esquerda, a sala de visitas. Entro em uma sala, cruzo para a outra, e depois paro contemplando a escadaria, tentando absorver o ambiente. Mas a situação não é confortável. A mulher está me olhando, como que à espera. Olho para o topo das escadas, agradeço e ela me leva à porta.

Emily Dickinson nasceu naquela casa, conhecida como Homestead, em dezembro de 1830, e morreu lá em 15 de maio de 1886. Passou boa parte de sua vida adulta ali, em um quarto no canto do piso superior da casa, escrevendo poemas e cartas durante a noite toda, em uma mesa do tamanho de uma carteira escolar; ela costurava os poemas em fardos, e depois os trancafiava, para que fossem descobertos depois de sua morte.

Porque cresci na Nova Inglaterra, eu conhecia sua vida, ou ao menos a versão romântica corrente ¿suas roupas brancas, sua reclusão. E havia lido muitos de seus 1,8 mil poemas. Eu era um menino amigo dos livros, escrevia versos e não encontrava meu lugar no mundo; tinha problemas com o conceito de autoridade, e estava em busca de heróis. Por herói, quero dizer alguém a quem admirar mas, acima de tudo, alguém com quem pudesse me identificar e de alguma forma quisesse ser. Encontrei o que procurava em Dickinson. Por isso, para mim foi uma grande experiência visitar a casa em que ela viveu, naquela dia.

Como descobri posteriormente, ela é objeto de fascínio, ou adoração, para muita gente, e é por isso que periodicamente retorna a uma posição de destaque na cultura, como é o caso agora. Dickinson é tema de dois livros, o romance intitulado The Secret Life of Emily Dickinson, de Jerome Charyn, e uma nova biografia por Lyndall Gordon, que sairá no próximo mês. E até 13 de junho, o Jardim Botânico de Nova York, no Bronx, abrigará uma elaborada exposição dedicada a ela, com uma recriação do jardim que ela mantinha em Homestead, uma seleção de poemas manuscritos e longas sessões de leitura de seus poemas.

Não surpreende que, depois de décadas de atenção estreita, existam tantas versões de Emily entre as quais escolher.

Embora os estudiosos costumassem concentrar suas atenções no isolamento de Dickinson, no passado, agora ela é vista como alguém que levava uma vida social muito intensa. (Sua correspondência, por exemplo, revela mais de 100 missivistas.) E suas conexões com sua era, por exemplo com a guerra civil norte-americana e a literatura vitoriana, ou o sistema de classes provinciano em que ela nasceu, também são tema de estudo.

A teoria feminista e os estudos homossexuais contribuíram para redefinir o perfil de sua personalidade. A figura tímida, passiva e discreta foi transformada em uma presença ativa, forte, desafiadora dos papéis sexuais, uma poeta em pleno controle de sua arte e ambiente e completamente consciente da mecânica de seu mito pessoal.

É verdade que a distância entre fato e ficção continua nebulosa, opondo de um lado a comunicativa Beldade de Homestead e de outro uma maluca agorafóbica. O retrato de Dickinson como uma estudante sexualmente precoce, oferecido no romance de Charyn, é quase completamente fantasioso, com apenas alguns grãos de verdade. O relato biográfico de Gordon sobre Homestead como um ninho de vespas no qual ciúmes e ressentimentos zumbiam sem parar é preciso no que tange aos fatos, mas dramático demais quanto aos efeitos.

A Dickinson que eu conheci e com a qual cresci também me foi revelada por uma dupla de livros. Fui apresentado a ela por um pequeno volume quadrado chamado Famous American Poets, de Laura Benet. Publicado em 1950, o livro consistia de biografias sucintas, cronologicamente ordenadas e determinadamente otimistas de escritores populares, tais como Clement Clarke Moore e Carl Sandburg, e Dickinson estava entre eles. E a Dickinson que o livro mostrava era uma perfeita figura dos anos 50, a começar do retrato usado como ilustração.

Existe apenas uma foto confirmada de Dickinson, um daguerreótipo de quando ela tinha 16 ou 17 anos. A imagem é a de uma menina esbelta, em um vestido escuro que lhe deixava os ombros e pescoço nus. O cabelo está preso para trás e expõe seu rosto largo e pálido. Os olhos muito separados estão voltados para frente, sem um foco determinado. Os lábios estão ligeiramente separados. Ela está sentada, e tem nas mãos um buquê frouxo de amores-perfeitos.

Foi esse o retrato usado no livro de Benet, mas a imagem sofreu retoques radicais. No livro, Dickinson usava um vestido branco com um pescoço rendado. O penteado era mais juvenil, e os traços de seu rosto foram atenuados. A foto havia sido alterada para servir como retrato da autora no primeiro livro de poemas de Dickinson, publicado postumamente. A imagem retocada data de 1890. Os retoques acompanham as alterações que os editores realizam nos poemas, normalizando a pontuação expressiva que ela utilizava, suavizando os ritmos e excluindo certos tipos de versos, especialmente os mais irados ou de conteúdo erótico.

Uma imagem bonitinha era uma jogada de marketing, e Benet a perpetuou 60 anos mais tarde. A biografia de Dickinson que ela oferece é a história de uma jovem bem educada que, depois de uma única decepção amorosa, decide se recolher à sua casa, onde escrevia, plantava flores, dialogava com seu deus calvinista e morreu satisfeita com o seu fado.

Essa imagem de Dickinson era útil para duas eras norte-americanas que tinham muito em comum. Na década de 1890, um país rico enervado pela urbanização, imigração e violência racial contemplava com nostalgia uma versão mais rural, branca e gentil de si mesmo. Dickinson, vendida como uma espécie de figura folclórica rural cujo abandono da vida social indicava rejeição ao mundo moderno, se tornou porta-voz daquele passado.

Na era da guerra fria, ela interpretou papel correlato. Com o avanço da paranóia com relação ao comunismo e à destruição nuclear, e o avanço concomitante do poderio norte-americano, o país voltou a sonhar com o ontem, povoado por pioneiros tementes a Deus. Dickinson, uma figura tão individualista quanto monástica, uma vez mais servia a essa imagem.

Era essa a imagem de Dickinson que eu recebia, mas mesmo então eu percebia que isso pouco tinha em comum com a poesia que ela deixou. Uma edição em três volumes de sua poesia completa, liberta das "melhoras" vitorianas, foi por fim publicada em 1955. A biblioteca de minha cidade tinha uma cópia, e eu a estudei com muita atenção. Descobri lá a poeta melancólica de Benet, mas também outra escritora, mais áspera, intensa, surpreendentemente imprudente, que escrevia sobre abraçar uma bomba, ter medo do próprio corpo e sentir a mente dividida. Em sua versão mais extrema, Dickinson se sentia terrorista:"Se eu tivesse uma arma poderosaCreio que atiraria na humanidade".E com isso descobri minha heroína.

E foi então que descobri uma segunda biografia de Dickinson, essa escondida em meio às estantes da biblioteca, Riddle of Emily Dickinson, escrita em 1951 por Rebecca Patterson. A capa mostrava o velho retrato retocado, mas sobre um fundo preto e cercado por folhas de cores exóticas, um estilo meio noir que eu associava a livros de mistério. Quando levei o livro para casa, me surpreendi com o que li.

Como Benet, Patterson atribuía o isolamento e a poesia de Dickinson a um romance frustrado. Mas acreditava que o objeto da paixão fosse uma mulher.

A revelação, verdadeira ou não, foi explosiva para um adolescente que se sabia gay mas ainda estava isolado naquele conhecimento. Como sempre, voltei de imediato à poesia de Dickinson e descobri nela uma dinâmica que havia sentido sem conseguir identificar: uma fluidez de gênero.

Dickinson escreveu na voz de uma mulher, de um homem, de uma menina, de um menino, de alguém que ama e de alguém que é amado. E subitamente ela passou a representar um exemplo de vida. Não apenas por ter vivido excluída mas também, aparentemente, por ter sido uma fora da lei, vivendo à margem, exatamente como eu sentia viver.

Adoro pensar em jovens, especialmente os que não se adaptam bem e não aceitam a vida como lhes é dada, encontrando os poemas de Dickinson, curtos como mensagens do Twitter, pela primeira vez, e depois descobrindo sobre a vida que ela levou tanto tempo atrás. Porque essa vida, pelo menos para um determinado menino, fez com que ser diferente parecesse não apenas aceitável como algo a desejar.

E talvez esses jovens decidam visitá-la, como fiz. Em 1963, Homestead ainda era uma casa particular.

Dois anos mais tarde, o Amherst College a adquiriu e agora ela se tornou museu, visitado por milhares de pessoas a cada ano. Na minha mente, eu também a visito, e muitas vezes. Dickinson continua a significar tanto para mim quanto significava no passado, e talvez mais. E continuo retornando para bater àquela porta.

Novos títulos estudam a vida de Emily Dickinson
Novos títulos estudam a vida de Emily Dickinson
Foto: Reprodução
The New York Times
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