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'Gypsy': tragicomédia materna garante a Totia Meireles status de diva

23 jul 2010 - 11h45
(atualizado às 13h37)
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Gabriel Perline

Explicar o sucesso de um musical que está em cartaz na Broadway há quase meio século e com seis montagens diferentes pode ser redundante para os amantes do gênero. No entanto, prever o mesmo fenômeno após uma pincelada tupiniquim é algo ousado, porém inevitável.

A versão brasileira de Gypsy, adaptada pela dupla Charles Möeller e Cláudio Botelho, tem todos os atrativos necessários para manter a atenção do público em suas três horas de duração: cenários variados e adequadamente construídos, figurino fiel ao período retratado na história (décadas de 1920 e 1930), alternância entre humor e drama sem doses de constrangimentos, texto dinâmico, músicas envolventes e elenco de primeira.

Por falar em elenco, todo e qualquer elogio a Totia Meireles, responsável por dar vida à megera e obcecada Mama Rose, não será piegas e se faz absolutamente necessário. Sua atuação marcante deixa boquiaberto qualquer estreante em plateias de musicais e justifica sua indicação à categoria Melhor Atriz na etapa carioca do Prêmio Shell. Sua voz, postura em palco e fôlego para cantar sete músicas sem sair do compasso mostra que ela conquistou a maturidade artística e é, sem sombra de dúvidas, uma das principais atrizes de musicais do Brasil. O espetáculo, definitivamente, é dela.

Sonhos alheios

O espetáculo Gypsy é baseado na autobiografia de Rose Louise Hovick (1911-1970), que aos 16 anos passa a atender pelo nome artístico Gypsy Rose Lee, uma famosa stripper e humorista americana do teatro burlesco. Sua obra dá destaque a sua mãe, Rose, que sempre sonhou com a fama e sucesso, mas acabou transferindo seus anseios às filhas, que viveram sob a obrigação de atingirem o estrelato. June (Renata Ricci), a caçula, loira e desenvolta, é a preferida e recebe todos os mimos dedicados a uma grande celebridade. Louise (Adriana Garambone), a menina sem jeito e de visual desleixado, carrega o título de preterida até o momento em que sua irmã abandona a família para se casar e tentar o sucesso por si própria. Neste momento, Mama passa para a primogênita a incumbência de se tornar alguém de prestígio no teatro de variedades, mas acaba se deparando com a decadência do estilo e cede, no intuito de arrecadar dinheiro para necessidades básicas, ao convite de veteranas de cabaré a iniciar sua carreira como stripper no teatro burlesco, local frequentado por homens adultos que buscam de divertimentos extras. Diante das necessidades, Louise perde a timidez e o pudor, tornando-se a mulher mais famosa de sua época.

O espetáculo inicia com uma espécie de show de calouros infantil, no qual baby June tenta mostrar suas "habilidades" artísticas. No entanto, o apresentador já deixa clara a existência de sua favorita, por ser irmã de uma garota de boas curvas, e esnoba as demais apresentações. Irritada com a fraude, Mama Rose surge da plateia e invade o palco histericamente, reivindicando um tempo maior para a performance de sua filha. Neste momento, o público conseguiu fazer uma breve leitura sobre a personagem: típica mãe que dá a vida em troca da felicidade de um filho. Mas não se trata somente disso.

Mama Rose é um exemplo de mãe castradora. Vislumbrada pela fama, ela impede suas filhas de terem contato com a infância e transfere a elas o anseio por uma vida de glamour e holofotes, fazendo-as se dedicar somente ao ensaio do exaustivo número Baby June e seus Jornaleirinhos, apresentado copiosamente nos teatros de variedades. Devido à sua ambição, ela rouba uma placa de ouro maciço que seu pai obteve como homenagem após anos de trabalho e deixa sua casa em Seattle com destino a Los Angeles em busca do sucesso. Nestes momentos, Totia faz bom uso de sua experiência e engata cantorias fortes e bem pontuadas no desenrolar da trama.

A mudança trará Herbie (Eduardo Galvão), um empresário falido, à vida do trio. Ele se apaixona por Mama Rose e juntos engatam uma relação sob a promessa de que se casariam assim que suas meninas atingissem o estrelato. Perseverante, ele se submete às suas ordens e passa a viver os sonhos da amada, com o intuito de concretizar o acordo feito com a megera.

June, a filha exemplar e grande aposta de Mama Rose, desabafa com a irmã e revela sua infelicidade em satisfazer os sonhos de sua mãe. Quando surge a oportunidade de se ver livre das loucuras materna, ela parte e a família se vê diante do fim de um sonho. Mas ela ressurge das cinzas em questão de três minutos, após rogar todas as pragas à menina "ingrata", e transfere para a desengonçada Louise a responsabilidade de conquistar a fama. Adriana Garambone dá um show de interpretação e, mesmo com poucas palavras, faz sua personagem emocionar o público com o gesto de amor: renuncia suas vontades próprias e busca o aperfeiçoamento artístico para não causar sofrimento à mãe, que muitas vezes a recusou e agora depende exclusivamente dela para atingir seus objetivos.

A garota se esforça, mas a falta de talento é constrangedora. Aliado à ausência da grande estrela, Mama Rose se depara com a decadência do teatro de variedades. Com a ajuda de Herbie, ela encaixa o número de Louise como uma das atrações de um teatro burlesco, mas ela sequer chega a se apresentar assim que a matriarca descobre a procedência do estabelecimento.

Tendo em vista o dinheiro que sua filha poderia lucrar, ela muda de opinião obriga Louise a assumir temporariamente uma das vagas de stripper. Mal sabia ela que estava prestes a realizar seu grande sonho.

No camarim do teatro retratado, um dos pontos mais altos do espetáculo. Um trio de vedetes da velha guarda, com suas fantasias esdrúxulas, foram as cerejas do bolo do musical. Tessie Tura (Liane Maya), Mazeppa (Sheila Matos) e Electra (Ada Chaseliov) arrancaram grandes gargalhadas do público com as performances atrapalhadas e sensuais. Embora a sensação fosse a de imaginar sua mãe ou avó (para os mais novos) com poucas roupas e em cima de um palco, elas deram conta do recado e não se colocaram de forma vulgar.

Dada a performance, chega o grande momento de Louise. Batizada de Gypsy Rose Lee pelas strippers do local, a menina se prepara para subir ao palco e tirar suas roupas. No momento em que coloca seu vestido azul, colado ao corpo, maquiagem e acessórios, ela se descobre mulher, com beleza e silhueta curvilínea. O choque de realidade, promovido por Adriana Garambone, mostra a sutil transição da fase infantil para a adulta. A estréia no teatro adulto não saiu como o esperado, mas rapidamente descobriu que seu talento era divertir os homens com seus números de striptease carregados de humor.

O talento de Gypsy a transforma na mulher mais famosa do mundo e cada vez mais independente da mãe. Quando atinge o auge de sua carreira, ela começa o trabalho de anulação de Mama Rose em sua vida: contrata empregados, cozinheiros, professores de idiomas, assistentes e assessor de imprensa. Rose percebe a vontade da filha em se ver livre dela e tenta impor sua autoridade materna, que logo percebe ser inválida diante do poder conquistado pela filha.

Em um momento de solidão da personagem, Totia Meireles se dirige ao gran finale com toque de maestria. Canta sua última canção, admitindo querer a fama para si, mas atribui ao fato de "ter nascido cedo demais e começado tarde demais" a incapacidade de concretizar os sonhos. Gypsy assiste em silêncio e se revela ao final da performance, elogiando a mãe, que logo faz planos de se apresentar em dupla com a filha e acaba ironizada pela própria, deixando explícito a vergonha que sente de sua mãe por causa de seu temperamento explosivo e autoritário.

Adriana sai de cena. Um letreiro, repleto de lâmpadas e com o nome de Rose estampado, desce ao palco e Totia, em meio à cantoria, se desespera com as luzes em seu nome se apagando, anunciando a morte daquela que anulou a vida das filhas.

Totia Meireles dá show como protagonista de 'Gypsy'
Totia Meireles dá show como protagonista de 'Gypsy'
Foto: Ricardo Matsukawa / Terra
Fonte: Redação Terra
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