PUBLICIDADE

O coração puro do seriado 'Glee'

11 abr 2010 - 07h36
Compartilhar
Alessandra Stanley

Glee é um seriado musical, mas estranhamente a música é a parte menos atraente do programa. A surpresa é que isso funciona -e os paradoxos ocupam posição central nessa excêntrica e atraente série cômica da rede Fox. Sentimental e autoirônica, cafona e moderna de modo altamente mordaz, cópia escancarada de todos os filmes clássicos sobre adolescentes mas ainda assim original, mash-up não só de canções pop e da tradição dos musicais como também de estilos narrativos, combinando sátira e melodrama, a série é uma paródia absurdamente exagerada, como se Arrested Development tivesse ressurgido em ambiente escolar, mas também existem vislumbres da dramaticidade mais autêntica de um seriado como Friday Night Lights.

Acima de tudo, porém, Glee é engraçado. Lea Michele, que interpreta Rachel, a aspirante a diva da Broadway, funciona como improvável heroína, e se torna a mais deliciosamente irritante arrivista em cenário escolar desde que Reese Witherspoon interpretou Tracy Flick em Election. Quando, depois de o grupo de canto enfrentar dificuldades em uma final regional, é preciso recorrer a Rachel para que ela interprete uma canção não ensaiada, ela prova estar mais que pronta. "Bem, tenho esse número em que estou trabalhando desde os quatro anos de idade..."

Rachel espera se tornar uma estrela, mas também aspira a ser popular, e quase todo mundo a despreza. "Você viu a roupa de Rachel hoje?", pergunta das populares cheerleaders a uma colega. "Sim, ela estava parecida com Pippi Meiaslongas, mas, tipo, em versão israelense".

Jane Lynch rouba todas as cenas como Sue Sylvester, a agressiva, masculina e trapaceira treinadora da equipe de animação de torcidas, que conspira para aniquilar o clube de canto e seu discreto diretor, Will Schuester (Matthew Morrison), porque ele ousou recrutar algumas de suas melhores animadoras de torcida para o coral. As vitórias de sua equipe em campeonatos de animadores de torcida valem a Sue a posição de comentarista em um telejornal local, e ela inicia sua participação defendendo o uso de bengaladas como punição. ('Podem perguntar a qualquer pessoa que se tenha sentido segura caminhando pelas imaculadas ruas de Cingapura", ela argumenta. E conclui com o lema: "Yes, we cane", fazendo um trocadilho entre bengaladas e o "yes, we can" que serviu de lema à campanha eleitoral do presidente Obama.)

Sue termina suspensa por tentar sabotar a vitória do clube de canto no torneio regional, mas consegue se recompor ao chantagear o diretor da escolar. E isso não é surpresa. O espírito sedicioso do programa praticamente requer que todos os triunfos e finais felizes com que a primeira temporada da série se encerrou em dezembro sejam revertidos no primeiro episódio da nova temporada.

Há muitos concursos de música e dança na televisão, e muitas comédias, mas no momento não existe um seriado de humor musical comparável a Glee. De certa forma, o programa não é capaz de concorrer contra American Idol -os números de canto e dança por seus atores bem treinados parecem enlatados e lisos demais quando comparados a amadores competindo ao vivo na TV, e com um fervor digno da era da Depressão. E existem muitos seriados de humor com uma pegada parecida, a exemplo de Modern Family ou 30 Rock. Até mesmo seriados para pré-adolescentes, como iCarly, mostram um tom subjacente de sarcasmo. Mas Glee tenta combinar American Idol e a torcida que o programa desperta à sofisticação dos espetáculos do show business, e o faz por meio de um estilo de humor mais excêntrico e sardônico, e por isso enfrenta uma tarefa de grau de dificuldade ainda mais elevado.

O elenco ajuda. Glee é um trabalho de equipe, e quase todos os personagens se saem bem em meio à estonteante teia de tramas que giram em torno de uma gravidez na adolescência. Quando Quinn (Dianna Agron), a líder das animadoras de torcida e presidente de um clube da virgindade, engravida e diz ao namorado Finn (Cory Monteith) que ele é o pai, o rapaz acredita, mesmo que os dois nunca tenham feito sexo. (Ela diz que tudo aconteceu por conta de um incidente na banheira.) Por fim ele descobre que seu melhor amigo, Puck (Mark Salling) é que engravidou sua namorada. Finn fica furioso, mas Quinn não parece se incomodar muito com o lapso, dizendo a Puck que "fizemos sexo porque você me embebedou com wine coolers e eu estava me sentindo gorda naquele dia".

Monteith exibe muito carisma como Finn, o armador bonitão do time de futebol que descobre ser bom cantor ao entrar para o clube de canto e é o rapaz mais popular da escola, embora não o mais esperto. "Peguei na livraria", diz Finn a Will, mostrando-lhe uma cópia da autobiografia de Walter Payton, um famoso jogador de futebol americano. "Você sabia", acrescenta Finn, maravilhado, "que a gente pode pegar livros emprestados lá? Todos, menos enciclopédias".

Will é o líder de comportamento irretocável, uma versão musical do garoto certinho de um filme adolescente, e Morrison o interpreta sem sarcasmo, permitindo que os seus colegas de elenco fiquem com as risadas. Em geral isso significa Sue, que jamais se cansa de zombar da masculinidade do colega, ou de seus cabelos cacheados penteados com gel. Pode vir, William", ela diz, com um sorriso feroz, quando Will ameaça uma revanche. "Estou razoavelmente confiante em que você terminará por acrescentar vingança à longa lista de coisas nas quais não é muito bom ¿por exemplo o casamento, dirigir o grupo de canto da escola e encontrar um penteado que não o deixe com cara de lésbica".

Kurt (Chris Colfer) é o integrante gay e ferozmente efeminado do grupo de canto que descobre um talento inesperado como chutador no time de futebol americano. Depois de um jogo, seu pai entra no quarto e o vê sentado diante do espelho da penteadeira, removendo a maquiagem do rosto. "Cuidar de minha pele à noite é parte importante do ritual pós-jogo", explica Kurt sem perder o ritmo. Hoje em dia, muitos seriados de humor incluem um personagem gay e exagerado quase como se isso fosse obrigatório, mas Colfer consegue exibir vislumbres do menino assustado que existe por sob a fachada sarcástica e antenada que ele exibe ao mundo.

E há também os números musicais.

Nos seus melhores momentos, a música reflete bem a dualidade da série, e oferece um toque de paródia aos números de produção cafonas que apresentam as canções. Na final regional, a balada que Rachel interpreta para salvar as chances de vitória do grupo é Don't Rain on My Parade, o principal número de Barbra Streisand no filme Funny Girl, e a jovem diva oferece um desempenho glorioso, que à sua maneira sempre histriônica representa sátira brilhante aos exageros dos musicais da Broadway. Ela imita até a pronúncia peculiar de Streisand ao cantar a letra.

Há outras escolhas inspiradas, como por exemplo aproveitar o sucesso e excesso de exposição de Single Ladies (Put a Ring on It), de Beyoncé, e fazer com que os jogadores de futebol a cantem como forma de recuperar o domínio dos nervos e irritar os adversários. Mas também há horrendos equívocos, claramente dublados, com arranjos exagerados para canções pops que tentam atender à audiência de American Idol mas terminam por contrariar o cinismo e o humor subversivo do programa.

Para isso, inventaram o sistema de passar pra frente nos DVDs e em algumas televisões mais modernas, que aceitam gravações de programas sem precisar de uma fita de vídeo.

O coração puro de 'Glee'
O coração puro de 'Glee'
Foto: Divulgação
The New York Times
Compartilhar
Publicidade