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Em 'Glee', a escolha da música nem sempre é feliz

11 abr 2010 - 07h39
(atualizado às 15h56)
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Jon Caramanica

Em um dos episódios finais na primeira temporada de Glee, Finn (Cory Monteith), o maleável, atrapalhado e bonitão armador do time de futebol americano e astro do clube de canto que protagoniza a série, opta por oferecer dedicação eterna a Quinn (Dianna Agron), sua namorada aparentemente angelical mas na verdade manipuladora, que está grávida de um bebê do qual Finn acredita ser o pai."O clube de canto nos passou a tarefa de escolher uma balada para cantar", diz Finn a Quinn e aos pais dela, que acreditam que a jovem ainda seja virgem. "Esse tipo de canção serve para expressar as coisas que a gente não encontra outra maneira de dizer".

E com isso ele dispara a cantar (You're) Having My Baby, canção de amor sentimental que Paul Anka gravou em 1974, aproveitando a letra para revelar uma verdade que ele não teria podido anunciar sem melodia.

No universo de Glee, que gira em torno de um clube de canto da William McKinley High School, em Lima, Ohio, a música serve como cura, como solução perfeita para todos os problemas. Não é um emprego, uma obrigação ou incômodo, de forma alguma; mesmo que o assunto seja pesado, a música é a única alegria. O plano de Finn termina por não funcionar ¿o pai de Quinn, enfurecido, expulsa a filha de casa-, mas pelo final do episódio o recurso dele à música prova sua eficiência: o casal está unido, apaixonado e, pelo menos naquele momento, seus problemas parecem ter desaparecido.

Mas ainda assim, que péssima escolha de música: uma canção sem graça, frouxa, repulsiva. Glee pode amar a música, mas frequentemente abusa dela, com desempenhos que carecem completamente de convicção. A cada episódio, algumas canções recebem o mesmo tipo de tratamento: interpretações entusiásticas mas antissépticas, gravações pesadamente editadas e nenhuma distinção clara entre os momentos verdadeiramente emotivos e aqueles que basicamente causam incômodo.

Em um programa que muitas vezes se prova surpreendemente preciso na captura das angústias de adolescentes excluídos, os números musicais grandiosos, supostamente os momentos altos de redenção emocional, costumam ser sempre os trechos menos convincentes. Há até mesmo situações em que eles trabalham contra a série, e servem para reduzir a boa vontade emocional que os demais elementos da série despertam nos espectadores. Isso acontece ao menos em parte devido à sua natureza fantástica. As interpretações dubladas, necessárias e até mesmo inevitáveis na gravação de um programa desse tipo, também representam momentos de insinceridade gritante, em um ambiente no qual a franqueza parece ser a qualidade mais procurada. Há momentos em que essa desconexão é sutil, mas em outros ela se torna extrema, e o sentimento em exibição na tela raramente se equipara àquele que os alto-falantes oferecem, ainda que sejam os atores mesmos que gravam as canções do seriado (em um estúdio escondido em algum lugar.)

No programa, os números solo convencem mais que as apresentações em grupo, que requerem que a suspensão da descrença seja mais profunda. No episódio final da primeira temporada ¿a série retorna terça-feira na rede Fox-, Rachel (Lea Michele), a estrela do grupo de canto, canta uma versão devastadora e crível de Don't Rain on My Parade na final regional de canto. Por um momento, tudo parece estar alinhado.

Mas é uma ocorrência rara, no entanto. O coral de Glee, chamado New Directions, é uma coleção de clichês e de talentos improváveis. Michele é uma cantora formidável, tanto ruidosa quanto atraente em sua ingenuidade; Monteith não faz feio. Os demais participantes talvez pudessem ser ótimos, mas é muitas vezes difícil determinar se esse é o caso, em meio à gritaria coletiva e às coreografias movimentadas. (Na semana passada, o elenco de Glee se apresentou na Casa Branca durante as festividades de Páscoa, e os vídeos do evento mostram que todos são cantores uniformemente bons, de certa forma.) E, estranhamente, Glee termina por solapar sua missão declarada de espalhar os bons sentimentos ao completar o coral com bonitões e bonitonas importados da equipe de animadoras de torcida e do time de futebol americano, o que deixa a impressão de que um grupo de canto ¿mesmo em uma série que gira em torno de um grupo de canto- não é capaz de se sustentar se a garotada bacana da escola não participar.

Liderando o pessoal temos o afável e canastrão professor de espanhol Will Schuester (Matthew Morrison); em um dos episódios ele canta um dueto de Endless Love com Rachel e consegue não parecer escroto em momento algum. Isso posto, Morrison deveria ser proibido de tentar raps, especialmente em cenas nas quais ele rodopia uma cheerleader enquanto canta "passa uma menina/ você deseja transar com ela", de Bust a Move, de Young MC. (Morrison, veterano da Broadway, foi o primeiro dos astros de Glee a assinar um contrato como cantor, recentemente, com a Mercury Records.)

Will é um líder jovial e animado. Em suas mãos, a música, ostentando sinceridade quase insuportável, serve como perfeito antídoto para a subcorrente sinistra de desconfiança que permeia a série. Ryan Murphy, o criador do seriado, também é responsável por Nip/Tuck, uma espécie de novela gótica sobre cirurgiões plásticos, e embora Glee superficialmente pareça ser a antítese de seu predecessor, muitas vezes a única coisa que separa as duas séries é o fato de que o elenco de Glee começa a cantar e com isso alivia o clima soturno.

Ocasionalmente, esse distanciamento irônico do programa chega à musica, como no episódio em que a enfermeira da escola serve pseudoefedrina aos alunos, o que resulta em números musicais rapidíssimos, em ritmo maníaco, que servem quase como sátira.

Essas apresentações não constam dos dois álbuns com a trilha sonora do seriado lançados pela gravadora Columbia, que recolhem alguns dos momentos musicais mais memoráveis da série mas raramente variam o clima. (O segundo disco menos substancioso e mais irritante que o primeiro.)

Outras das canções menos acomodadas também terminam excluídas. Não há faixas do Acafellas, o grupo de harmonia musical adulto formado por Will; a interpretação de Papa Don¿t Preach por Quinn, uma das covers mais centradas e fortes da série, também fica de fora. (Ainda este mês, Glee terá um episódio só com canções de Madonna, mas aparentemente sem reprisar esse número.)

E temos Kurt (Chris Colfer), o aluno gay cuja trajetória, de excluído arrogante e obcecado por moda a improvável herói de futebol americano é a narrativa mais desenvolvida entre as dos personagens principais da série. Mas, das 38 canções da trilha sonora lançadas, Kurt canta os vocais principais de apenas uma, Defying Gravity, do musical Wicked, com a qual espera derrotar Rachel mas cujo agudo final ele não consegue atingir.

Mesmo assim, Kurt é o propulsor emocional de Glee, responsável por dois de seus momentos mais pungentes: a cena em que ele derrame uma raspadinha sobre si mesmo para que Finn, que está lutando para manter a lealdade de seus colegas de futebol americano sem com isso atacar os amigos do clube de canto, não seja excomungado; e a cena em que consola seu pai, que deseja ser progressista quanto à opção sexual do filho mas não consegue 100% de sucesso. Nas duas cenas, Kurt mostra charme e dignidade trágicos. E em nenhuma delas expressa seus sentimentos pelo canto.

Seriado 'Glee' exagera no uso da música
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Foto: Divulgação
The New York Times
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